Sexta-feira,
fim de expediente. Saio do trabalho olhando para o céu, admirando a tempestade
que se forma lá no alto. Levo, comigo, as poucas coisas minhas que estavam no
escritório onde, por anos, trabalhei. Na verdade ninguém sabe que não voltarei,
não fiz alarde. Preferi que meu último dia fosse como todos os outros – sendo
um mero nada para todo mundo.
Passei no
mercado e comprei algumas das comidas que eu mais gostava. Fingi sorrisos, como
de praxe. Vi de longe alguns conhecidos na rua. Evitei passar perto deles. Com
a cabeça baixa, carregando algumas sacolas e a mochila com minhas coisas, eu
andava lentamente.
Vi algumas
crianças que brincavam no quintal de uma casa. Enquanto as observava, lembrei
de minha infância. Lembrei da inocência em viver por viver, sem pensar, sem
sentir, sem me preocupar. Meu semblante unia um sorriso de canto de boca e uma
lágrima no canto do olho.
Encontrei
alguns casais, felizes, andando de mãos dadas. Provavelmente estavam saindo
para aproveitar a sexta-feira. Sorrisos invejáveis estampados em seus rostos. Minhas
mãos, que nunca seguraram as mãos de ninguém, já estavam cansadas de segurar as
sacolas. Parei em um ponto de ônibus para descansar. Um ônibus estacionou e eu
acenei que não iria entrar. Minha casa não era tão perto, mas eu queria
aproveitar para caminhar, por mais que esse ato me machucasse ainda mais.
Levantei-me e
segui meu caminho. Ouvia trovões ecoando, a chuva estava para começar. Eu não
me importaria em me molhar. Naquele momento nada mais importava. Entrei em uma
rua deserta, semelhante ao meu coração. Passei por um cachorro que havia sido
atropelado. Enquanto olhava para o cadáver dele, meus olhos enchiam-se de
lágrimas. Pobre animal. Queria ter sido como eles. Viver sem pensar na
possibilidade de morrer. Viver um dia de cada vez, sem ter noção da finitude,
sem se preocupar com o amanhã.
As lágrimas
desciam por meu rosto enquanto eu tentava apagar da minha mente aquela imagem.
Daria a minha vida pela vida daquele cão. Daria a minha vida pela vida de
qualquer pessoa que estivesse morrendo naquele momento. Carrego comigo um
sentimento dolorido, de preferir o meu mal ao ver alguém mal. Talvez porque
sempre me importei mais com os outros do que comigo mesmo. Talvez porque eu não
mereça que alguém se importe comigo, nem mesmo eu.
Minha
existência parecia se resumir em sentir todas as minhas dores somadas às dores
do mundo. Eu mal conseguia suportar as minhas, por que, então, deveria sentir
as dores alheias? Animais abandonados, pessoas morando nas ruas... Tudo isso me
afetava de uma maneira indescritível. Algo que eu não poderia mudar (não
poderia mudar meu sentimento e nem a vida de tais pessoas e animais).
Eu já estava
quase perto de casa. Cansado, dolorido e mal suportando o peso que carregava –
nas mãos (as sacolas) e nas costas (os pecados). A chuva havia começado e, por
um breve momento, senti-me feliz. Sempre gostei de chuva. Era como se o céu e a
minha alma fossem um só. Como se o céu sentisse os pesares de meu coração.
Abri o portão
e não o fechei. Entrei em casa, tranquei a porta e coloquei as compras sobre a
mesa. Joguei a mochila e os pertences que estava trazendo do trabalho em um
canto. Abri as janelas da cozinha. Acendi as luzes e deixei-me levar pelo som
da chuva caindo no telhado. Enquanto a chuva aumentava e a tempestade envolvia
a cidade, eu resolvi tomar um banho para relaxar. Em meu quarto, preparada há
dias, uma corda que faria a minha tempestade cessar.
De banho
tomado, retorno à cozinha. Ligo o microondas e inicio as preparações do meu último
jantar. Coloco um pen-drive no aparelho de som e deixo, em repeat, a canção Nobody Can Save Me. Já passava das nove da noite quando, de fato, comecei a jantar.
Eu cortava o
bife enquanto pensava no animal que havia sido sacrificado para saciar a minha
fome. Uma metáfora para o que fui em vida – um animal sacrificado para saciar
as fomes alheias. Carnívoros que me devoraram vivo, sempre voltando para mais.
Como os corvos que se alimentavam de Prometeu. Envolto em tais pensamentos, não
consegui comer a carne.
Batata frita.
Minha comida favorita desde criança. Enquanto a saboreava, imaginava todas as
pessoas que, naquele momento, estavam com fome. Que arrogância a minha. Fazendo
um último jantar enquanto há pessoas que, de fato, morrem de fome. Engulo seco
e desisto de jantar. Sem sequer tocar na lasanha, deixo os copos ainda cheios
sobre a mesa e me levanto.
Apesar da fome, não havia conseguido comer quase nada.
Apesar de passar tanto tempo vivo, não havia conseguido viver. Apago todas as
luzes e vou até meu quarto, iluminado apenas por uma vela. Subo na cadeira, de
onde admiro a vaziez de meu quarto e a escuridão que só não é total por causa
de uma velha vela com a luz bruxuleante. Lá fora, o mundo parece acabar. Trovões
e relâmpagos são ouvidos e vistos.
Chuto a
cadeira e ouço a corda esticar-se. Embora carregasse um nó na garganta há muito
tempo, a sensação de um nó no pescoço é totalmente diferente. Parece queimar a
pele. Estive sufocado há anos, nunca da forma como agora. Por mais assustador e
macabro que possa parecer, desta vez era uma sensação confortante. Porque, no
fundo, eu sabia que seria a última. Que, desta vez, essa dor, esse sentimento
de vazio e vontade de chorar não iriam durar mais um dia.
A chama da
vela lentamente se apaga. A chama de minha vida também.
Enfim o (desejado, ansiado, querido e esperado) fim.
Esperava aliens Na história:)
ResponderExcluirFascinante, deprimente e intenso. Assim descrevo esta triste história que é, de fato, a realidade de muitas pessoas até mesmo neste exato momento em que estou digitando. Captar o vazio que sente o protagonista, faz o leitor sentir de certo sua dor, sua angústia, a angústia de alguém que viu o mundo perder sua essência, viu a própria vida perder a essência.
ResponderExcluirSão almas que se prendem a dor e, infelizmente, não encontram outra luz para se libertarem das amarras de seu sofrimento senão seu fadado silêncio eterno.
Doloroso, mas libertador...
Por que me identifico e ainda espero minha liberdade eterna chegar sendo que o autor diz da dor,da angustia e da essência da vida ser perder isso é realmente intenso
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